Se aquela bola não batesse na perna…

Quem diz que poeta é fingidor é porque não sabe das manhas do jogador de futebol. Está pra existir, no mundo das artes, um ator melhor que o boleiro. Pode olhar: numa hora ele aplica um golpe no adversário e levanta os braços, como se fosse inocente — parece um beato erguendo as mãos aos céus. Noutro minuto ele nem é triscado e cai e fica se contorcendo em campo — parece até que foi espancado pelo adversário.

Às vezes, quando finge ter sofrido falta e o juiz não vai na sua onda, ele fica lá caído, solitário, no gramado — “Está lá um corpo estendido no chão”. Com a encenação, ele quer dizer à plateia: “O juiz não marcou, mas eu tomei uma pancada do adversário, tanto tomei que estou caído até agora”.

No último domingo, no jogo entre Botafogo e Vitória, no Rio, o ponteiro marcava trinta e nove do segundo ato, as cortinas já abaixando para o final da peleja e o meu Vitória perdendo de 2 a1, de virada. Tudo indicava que falaríamos, uma vez mais, aquela velha máxima dos velhos torcedores cansados de guerra: “Jogamos como nunca, perdemos como sempre”.

Lá se iam as últimas voltas do ponteiro e o nosso craque Neilton pega a bola no lado esquerdo do ataque, passa por um, passa por dois, vai fazendo um carnaval e, pruft, se atrapalha em suas próprias pernas e se estatela sozinho no gramado. Não podia reclamar de nada nem de ninguém, nem do vento, nem do juiz, nem mesmo de algum buraco no gramado, que era uma tapete. Ele caiu de maduro, devem ter dito os narradores, com razão.

Caiu e ficou deitado, como se não tivesse força pra levantar. Pelo script que já se conhece, o árbitro pararia o jogo para que os médicos atendessem o atleta caído. Em seguida ele teria que sair de campo — e sairia de maca, fazendo cara de dor.

Se pudesse ser substituído, outro entraria no lugar. Mas o time já havia queimado as três substituições possíveis, então ele voltaria “no sacrifício”, se arrastando, a tevê mostraria a chuteira, a perna manca, a expressão de dor. O jogo terminaria, o time perderia e ele seria poupado de críticas, pois “se doou” em campo. Depois da partida ele seria medicado e os exames indicariam uma lesão por causa da queda bisonha no gramado, e o departamento médico — a área que mais trabalha no clube — vetaria o jogador por pelo menos duas semanas, que se estenderiam por mais dois meses, talvez nem jogasse mais este ano, ficaria só no come-e-dorme, como outros no atual elenco.

Só que o futebol é uma daquelas coisas que existem entre o céu e a terra e que a nossa vã filosofia jamais conseguirá explicar. Estava lá um corpo estendido no chão, só que não era qualquer um, era um craque, e a bola procura as pernas do craque com fidelidade canina. Então ela correu e parou nas coxas dele: “Levanta, Neilton, vem, meu garoto, me puxa, me conduza, me leve para o gol”. Aí ele sentiu o sopro, o carinho, o flerte da musa. E levantou-se com ela, mas se perdeu de novo, e ela foi puxada por outro para dançar. Ele viu, porém, que a deusa estava a fim de jogo e lhe reservara alguma coisa pro final.

Neilton se animou, virou o diabo, tanto é que, quatro minutos depois, tomou a bola de novo em seus pés (como se fosse nos braços), fez uma boa jogada, passando por um e por dois, mas a zaga espanou tudo pra escanteio. Ele tomou de novo a iniciativa, pegou a bola e cobrou o corner certinho para André Lima, que só usou a cabeça para fazer o tento — estava empatado o baba, resultado que mantinha o time fora da zona da degola.

Ainda tinha mais. Faltavam quinze segundos e o time voltou em contra-ataque, como famintos em busca de um prato de comida. E ela, a bola, caiu nos pés de quem? Dele, o craque Neilton, que a aparou com todo carinho, deu-lhe uma piscada de olho, e passou com estilo para Danilinho. Este dividiu, limpou, ajeitou e marcou — estava sacramentada a reviravolta rubro-negra no Engenhão: 2 pro Botafogo, 3 pro Vitória. Três pontos na sacola, a quinta vitória seguida como visitante.

Agora, meu amigo, imagine se aquela bola, aos trinta e nove do segundo tempo, não batesse — caprichosa e oferecida — nas pernas do craque…

(Marcelo Torres, jornalista, amigo do BLOG, servidor público federal, baiano, torcedor do Vitória, mora em Brasília)

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