Desde o surgimento das primeiras organizações políticas antifascistas, que datam do período em que Benito Mussolini foi eleito primeiro-ministro da Itália em 1922, o fascismo e o posicionamento político de combate aos ideais de extrema direita caminham juntos. No futebol, a democracia corinthiana floresceu quando pedia mais direitos em tempos de ditadura, na mesma década em que os sindicatos trabalhistas ingleses compuseram parte do hooliganismo como forma de contestar as medidas autoritárias adotadas pela governante Margaret Thatcher. Era de se esperar que a ascensão e eleição de Jair Bolsonaro, político de discurso ultradireitista e de relação próxima com o futebol, motivasse também o crescimento de grupos de torcedores antifascistas nas arquibancadas brasileiras durante os últimos anos.
Há cerca de 60 torcidas de futebol antifascistas representando clubes brasileiros de todas as regiões, de acordo com pesquisa virtual feita pela reportagem. Elas não se consideram torcidas organizadas —algumas sequer conseguem estar presentes dentro do estádio—, mas são coletivos que usam seu clube de futebol com pano de fundo para trazer discussões políticas com um viés contra homofobia, racismo, machismo e capitalismo. Entre todo o escopo, nove clubes brasileiros tiveram os representantes antifascistas analisados: Internacional, Athletico Paranaense, Palmeiras, Fluminense, Vasco, Cruzeiro, Santa Cruz, Paysandu e Ferroviário do Ceará.
Com exceção da Ultras Resistência Coral, torcida do Ferroviário, que foi criada em 2005 e ostenta o título de torcida antifascista mais antiga do Brasil, todos os outros movimentos foram fundados a partir de 2014, ano em que Bolsonaro foi eleito o deputado mais votado do Rio de Janeiro e já anunciou que seria candidato à Presidência no pleito seguinte. A maior torcida é a do Internacional com 115 integrantes, enquanto a menor, do Flu, disse ter oito. Uma média de 25% das torcidas é composta por mulheres, enquanto a média de idade dos membros fica em torno dos 28 anos. Os dados, levantados até o mês de setembro de 2019, são vistos como surpreendentes pelo antropólogo do esporte José Paulo Florenzano: “Trata-se de um agrupamento cuja experiência de vida permite combinar esporte e política de forma mais consciente. E também é um dado revelador de espaço conquistado pelas mulheres na arquibancada”, afirma o professor da PUC-SP, ressaltando que a representatividade feminina nesses agrupamentos é maior do que em outros núcleos das torcidas de futebol brasileiras.
A forma como as torcidas trazem a discussão antifascista varia conforme a realidade. Em Porto Alegre, os colorados da Inter Antifascista pressionaram a diretoria de seu time com manifestações por um ingresso mais barato, ação feita com o intuito de apoiar O Povo do Clube, um movimento institucional de torcedores do clube gaúcho que alcançou relevância dentro da política colorada e foi bem-sucedido nesta demanda. Graças à diminuição do preço, o coletivo antifascista consegue estar presente no setor mais popular do Beira-Rio, ao lado da Guarda Popular, uma das organizadas. “Quando queremos ficar juntos, nos reunimos no setor sem cadeiras, que só é acessível para nós porque nos mobilizamos”, conta o coletivo. Os gaúchos, assim como os outros movimentos, preferem não se identificarem. A escolha é motivada pelo receio em se expor para grupos que usem da violência para confrontar os antifascistas.
Fora do estádio, os torcedores do Inter realizam ações com movimentos negros, feministas e pelos direitos dos trabalhadores. Os torcedores participam dos protestos realizados pelo Quilombo Lemos, espaço urbano em Porto Alegre ocupado por negros que sofre ações de reintegração de posse movidas por um asilo franciscano vizinho. A atuação é semelhante à da Palmeiras Antifascista, que também se preocupa com a militância fora dos jogos e faz atividades nas regiões afastadas do centro de São Paulo para “plantar a semente do antifascismo”, como um campeonato de futebol organizado no bairro do Grajaú recentemente junto com a Coringão Antifa, coletivo do maior rival. Dentro do estádio, os palmeirenses levam faixas em homenagem a Marielle Franco, aos jogadores negros da história do Palmeiras e contra a privatização do Pacaembu, pautas que evidenciam o combate ao machismo, racismo e mercantilização do futebol. “São formas de fazer um trabalho de base, porque colocar nome difícil e palavras de ordem não vai funcionar. Precisamos usar a mediação para convencer as pessoas”, afirma a torcida.
Palmeirenses também dizem confrontar torcedores nas arquibancadas quando avaliam que o comportamento é racista, machista ou homofóbico. A torcida, inclusive, surgiu em 2014 quando os idealizadores “começaram a sentir mais a presença de fascistas nas arquibancadas”, sendo o estopim da fundação uma discussão nas arquibancadas de um jogo do Palmeiras com um torcedor que vestia a camisa da Irriducibili, torcida do time italiano Lazio abertamente fascista.
No Rio de Janeiro, Fluminense Antifascista e Esquerda Vascaína são duas referências entre as torcidas de futebol de esquerda. Os tricolores são os únicos entre os coletivos consultados que buscam uma aproximação com partidos políticos. “Não queremos ser partidarizados, mas não podemos ficar de fora do debate sobre clube-empresa ou preço do ingresso do Maracanã. Por isso o eixo burocrático é importantíssimo”, justificam os torcedores. No estádio São Januário, os vascaínos relatam ameaças vindas de parte da maior torcida organizada do clube, a Força Jovem, quando colaram adesivos em jogos do Vasco a favor do candidato Fernando Haddad durante o segundo turno das Eleições. Nenhuma agressão foi concretizada. A Esquerda Vascaína foi a única das torcidas que fechou apoio a outro candidato além do presidenciável petista no duelo contra Bolsonaro; no caso, eles também anunciaram voto em Tarcísio Motta, candidato vascaíno pelo PSOL ao Governo do Rio de Janeiro que acabou em terceiro lugar no primeiro turno. Ambas se juntaram nos protestos #EleNão, onde o objetivo era repudiar a candidatura de extrema-direita de Bolsonaro, durante o períodolo eleitoral de 2018.
Com o intuito de ter influência na política tricolor, a Flu Antifascista enviou no começo do ano uma carta ao atual presidente, Mário Bittencourt, exigindo um reforço do futebol feminino do clube e mais ações sociais vindas da instituição, além de outros compromissos. Os torcedores dizem que Bittencourt concordou com os pedidos escritos, mas que ainda “é cedo para avaliar”. A proximidade dos torcedores com o lado institucional do clube é algo desejável também pelos vascaínos, que buscam através dos sócios ter influência nas eleições para presidente e conselho do Vasco. No geral, os antifascistas possuem relações distantes e neutras com torcidas organizadas, marcadas por episódios específicos como o envolvendo Esquerda Vascaína e Força Jovem. A proximidade é muito maior entre as torcidas antifas, mesmo sendo de clubes rivais. “Antes de sermos palmeirenses, somos antifascistas”, resume um integrante da Palmeiras.
Como as datas de criação evidenciam, o fenômeno que envolve esses coletivos é recente e, por isso, a articulação vai pouco além dos limites geográficos e os torcedores não se mostram consolidados como torcidas de futebol ou coletivos políticos. “Para muita gente de fora, parece que não agimos porque não damos publicidade”, opinam os tricolores. Ainda assim, uma nota de repúdio ao Bolsonaro publicada no Facebook repercute mais do que ações das torcidas fora e dentro dos estádios, o que traz a ideia de que a militância está mais no campo virtual do que no real. “Temos as dificuldades em estar mais presentes fisicamente, por conta do ingresso, das burocracias e do receio do enfrentamento. Mas precisamos contornar isso e sair da bolha”, confessam palmeirenses. “É necessária uma frente nacional maior, do tamanho da tarefa que temos pela frente. Não vamos conseguir discutir tudo sozinhos”, explicam os representantes colorados, que também preferem não se identificar.