Passemos a bola para Eduardo Galeano, um uruguaio que era craque das letras, autor de um verdadeiro gol de placa, o livro O futebol ao sol e à sombra:
“Um belo dia a deusa dos ventos beija o pé do homem, o maltratado, desprezado pé, e desse beijo nasce o ídolo do futebol. Nasce em berço de palha e barraco de lata e vem ao mundo abraçado a uma bola”.
“Quando criança alegra os descampados e os baldios, joga e joga nos rimos dos subúrbios até que a noite cai e ninguém mais consegue ver a bola. Suas artes de malabarista convocam multidões, domingo após domingo, de ovação em ovação, de vitória em vitória”.
Lembro dessas palavras após ler uma notícia de jornal a respeito de um atleta que viveu seus dias de alguma glória e que hoje bate perigosamente nos perigos do abismo.
Ele nasceu em 16 de fevereiro de 1979 em Vila Velha, Região Metropolitana de Vitória, no Espírito Santo.
Pesquisei, mas não achei, o nome da mãe — digamos que seja Maria. Então, pelo gosto e pela vontade de dona Maria, o nome do menino seria Crístofe.
Não, essa graça não era em glória e louvor a Jesus Cristo, aquele que, segundo o credo religioso, teria sido concebido pelo poder do Espírito Santo, nascido da virgem Maria, padecido sob Pôncio Pilatos, crucificado, morto e sepultado, descido aos infernos e ressurgido dos mortos ao terceiro dia.
Não, não era em nome de Jesus, mas coisa de cinema — uma homenagem a um ator de então 27 anos, o novo galã da telona, o nova-iorquino Christopher Reeve, que naquele ano alcançava o ápice da fama no papel principal de Super-Homem, sucesso de bilheteria do cinema mundial.
Esse nome, porém, contrariou o pai, que também não sei o nome, mas aqui vou chamá-lo de José. Homem simples e humilde, seu José disse, com razão, que aquele nome era de difícil pronúncia, poderia ser um problema para o filho, a mulher que arranjasse um nome mais fácil.
João, José, Joaquim, Pedro, Paulo, Francisco, Manoel, Antônio — qualquer nome comum era recusado de primeira. Foi aí que apareceu uma comadre, madrinha de casamento, que aqui chamarei de Conceição, chamada como se juíza fosse, autorizada a meter a colher naquela briga nominal de marido e mulher.
— Galã por galã, por que não chamar Alan Delon? — ela abrasileirou o nome do ator francês.
— Mas quem é esse, comadre Conça? — perguntou dona Maria.
— Eu também nunca ouvi falar — emendou seu José.
— É o homem mais bonito do mundo, nunca vi um igual — assegurou a comadre Conceição. — Além disso —, argumentou ela, — além disso, é um nome lindo, fácil de falar.
Pronto, sob o apito da comadre Conceição, estava resolvida a pequena peleja conjugal. E foi assim que Allan Dellon Santos Dantas constou na súmula e pela primeira vez entrou em campo.
E assim como outros brasileirinhos humildes, o menino viu o futuro na bola, não a de cristal, certamente, mas a bola de futebol. Pode-se dizer que tudo começou em 1993, quando, aos catorze anos, o menino viu pela TV a final do campeonato brasileiro entre Vitória e Palmeiras, e ele torceu pelo rubro-negro baiano.
Primeiro, porque a decisão era um autêntico embate de Davi contra Golias, e ele era Davi desde criancinha. Segundo, porque o Vitória era homônimo tanto da capital capixaba como do time pelo qual ele nutria alguma simpatia no estado.
(Por falar em nome, um parêntesis: os locutores do eixo Rio-São Paulo às vezes chamam o Leão da Barra de “Vitória da Bahia”, para que o público nacional não o confunda com Vitória do Espírito Santo, Vitória da Conquista ou Vitória de Santo Antão.)
Na decisão, o rubro-negro baiano não conseguiu superar o milionário Palmeiras, ficando com um honroso segundo lugar. No ano seguinte, o clube, que tinha escolinha em várias cidades brasileiras, realizou uma “peneira” na capital capixaba e Allan Dellon foi selecionado, mudando de endereço para Salvador, onde ingressaria nas divisões de base do Vitória.
Ele já sabia da fama das crias do clube baiano, que até ali havia revelado o atacante Bebeto — destaque da seleção brasileira na conquista do pentacampeonato mundial naquele ano — o goleiro Dida e o volante Vampeta, que também seriam campeões mundiais pela seleção.
No Vitória, Delon atuou entre os anos de 1998 e 2004, anotando 76 gols em 239 jogos, sendo o 10º maior artilheiro do clube. Nos sete anos, com ele em campo ou na reserva, o Vitória ganhou sete títulos, sendo quatro vezes o campeonato baiano e três vezes a Copa do Nordeste.
Atletas que jogaram com ele, bem como cronistas esportivos baianos que acompanharam sua carreira, avaliam que Allan Dellon é mais um daqueles jogadores que, tendo um talento precoce e sendo promessa de craque, logo cedo acabou deslumbrado, se perdendo em noitadas de bebidas e mulheres.
E olha que, neste último quesito, ao contrário do seu xará francês, ele não recebeu dos deuses a dádiva da beleza. Quanto ao talento com a bola, no Vitória até que ele teve alguns lampejos em uma ou outra campanha de título, mas nunca encheu os olhos dos torcedores do clube — aplaudido que era em um jogo para ser vaiado na semana seguinte.
Depois do Vitória, ele teve breve passagem pelo futebol mexicano, retornou ao Brasil e virou um andarilho, mais um andarilho dos gramados brasileiros. Entre outros clubes, passou pelo Vasco, Sport, Ceará, Brasiliense, Juventus, América de Natal, Fluminense de Feira, Gama, Samambaia e Ceilândia — neste último, em diversas passagens, inclusive na atual temporada.
Quem nunca esquece o que ele fez pelo nosso Vitória é meu irmão Arízio, que se diz “devoto da gratidão, pelo pouco ou pelo muito”. Tanto é assim que, nascido o seu segundo filho, batizou-o com o nome Allan Dellon, hoje um menino dando os primeiros passos e passes no futebol, lá em Sátiro Dias-BA.
E eu, se faço essa crônica, é porque li hoje no Jornal de Brasília a manchete: “Allan Dellon é preso por embriaguez ao volante”. O jornal informa que o atleta foi submetido ao teste do bafômetro, que apontou 1,15 miligrama de álcool por litro de ar expelido. “O jogador foi preso na noite de domingo após bater o carro contra um poste na cidade satélite de Ceilândia. Logo após o acidente, ele tentou fugir do local, mas foi contido por populares, que chamaram a polícia”.
Agora, devolvo a bola para o craque uruguaio:
“Um belo dia o jogador descobre que jogou a vida numa só cartada e que o dinheiro evaporou-se, e a fama também. A fama, senhora fugaz, não costuma deixar nem uma cartinha de consolo”.
“E quando chega a hora do azar para o pé de ouro, a estrela conclui sua viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com mais remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou paralítico, o artista é uma besta”.
“Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E às vezes, quando se quebra, a multidão o devora aos pedaços”.
O vídeo corre pelas redes sociais. O carro partido pela frente por um poste. No vidro traseiro, um adesivo de Bolsonaro: “Deus acima de tudo”. Ao lado, o ex-ídolo caído ao chão, algemado, cercado por policiais, “preso em flagrante por crime de trânsito”.
De um lado o esperavam os céus da glória; do outro, agora, os abismos da ruína. E se antes alguma multidão o aplaudia, hoje outra multidão o devora aos pedaços.
Marcelo Torres é jornalista, baiano, torcedor do Vitória e morador do Distrito Federal (texto publicado originalmente no Blog de Juca Kfouri em 13/11/2018).